Espaço BECRE

Espaço BECRE
Esta é a BECRE da Escola EB 2, 3 Júlio do Carvalhal, o novo espaço inaugurado no dia 7 de Janeiro de 2009.

30/03/2009

Escola de Escritores - Meia-noite e um quarto (Parte II)

Leonardo sorriu, o diabo começava a mostrar alguma indignação em relação à atitude do anjo.
-Tive os meus motivos e tenho os meus motivos para escolher ir para esta barca de dor que me aguarda. Pois tu o mais pecador dos pecadores que te julgas digno de julgar os outros, apenas por estes não serem perfeitos, não ser perfeito é a definição de ser humano, e essa é que é a verdadeira perfeição, perfeição que não está ao alcance dos doidos ou das crianças, ou, por vezes, está ao alcance das crianças, mas isso é obra vossa.
-Perfeito, dizes tu, de qualquer maneira se a perfeição fosse como tu dizes tu serias imperfeito, pois todo o humano, pecador, tenta alcançar o reino dos céus, porque não tu?
Deu-se uma breve pausa, de um momento para o outro, o diabo começou-se a aperceber que, afinal, não sabia tudo sobre o jovem rapaz que havia cometido o maior de todos os crimes, naquela noite, à meia-noite e um quarto. Aquele não era um rapaz vulgar.
- Vem – disse subitamente o diabo – sabes o que queres, e porque queres, isso para mim basta, entra na barca e vamos embora!
Dito isto o diabo pegou-lhe pelo ombro e virou-o, conforme se virou, viu-lhe os olhos, lágrimas, lágrimas de raiva, lágrimas que haviam esperado uma vida para ser derramadas, lágrimas que transportavam ódio, dor, sofrimento, angústia!
Naquele momento, no cais, Leonardo transformou-se em criança, chorava, sim, as crianças devem chorar, porque tem de comer a sopa, porque são contrariadas, é um direito que ninguém lhes pode negar, porém o menino nunca havia chorado, pois não havia encontrado situações suficientemente fúteis que merecessem as suas lágrimas.
-Porquê?! – Soluçava o menino – Ninguém quis saber! Ninguém quer saber, a culpa é toda vossa! Vocês levaram o papá, vocês levaram a mamã, vocês levaram-me a vida, vocês levaram-me para a vossa casa dos horrores e assassinaram-me no vosso mundo, assassinaram o meu coração! Fecharam os estores para ninguém ver, e ninguém viu, nem mesmo Deus, nem o vizinho da frente, fecharam os estores para que não pudesse entrar luz de amor na casa, e me pudesse salvar! Vocês ditaram toda a minha vida, obrigaram-me a ser adulto, quando todo o adulto para ser adulto tem de ser também criança, mas vocês mataram-na sem piedade, mataram a minha criança, e agora sou incompleto, não passo de uma aberração, um corpo sem alma, que apenas quer que um estore se abra, e lhe traga cor ao meu coração mutilado e cinzento! Vocês é que ditaram que eu viesse aqui não como um perfeito pecador, mas como um assassino, vocês destruíram o meu passado, o meu presente, e agora o meu futuro!
O menino soluçava cada vez mais estava agachado no chão, chorava, o coração inexistente do anjo e do diabo apertou. Deitou-se e começou a rebolar pelo chão do cais como um menino a fazer birra.
-Quero a mãe, quero o pai, quero o inferno e o mundo imperfeito, pois é lá onde eles estão à minha espera, para me dar colo!
Dito isto desequilibrou-se da berma do cais enquanto rebolava e caiu no imenso mar vermelho carregado. Foi o fim.
- Nenhum de nós alguma vez será merecedor da sua alma – disse a bela jovem de cabelo branco, deixando correr uma lágrima pelo canto do olho azul. O homem de smoking acenou com a cabeça, concordando. A lágrima do anjo deslizou pelo queixo caindo no chão, o diabo atirou a beata do cigarro ao mar, e o sol pôs-se finalmente, dando lugar ao misterioso negro da noite, e à tranquilizante luz de luar que se reflectia no mar, agora também ele negro.
-Há com cada besta – concluiu o tonto. As barcas partiram.

Nota: Esta é a segunda e última parte do texto Meia-noite e um quarto, escrito na Oficina de Escrita Português - 9ºB – Criminalidade – Baseado na obra de Gil Vicente O Auto da Barca do Inferno.
João Pedro Ferreira Morais, nº 11, 9ºB

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